Moca, moca, moca. Dona Geraldina não ouvia nada e além de moca era segueta. Ninguém sabia como ela identificava alguém se era moca e sega, mas ela identificava qualquer pessoa que ela já havia tido contato.
Todas as manhãs mandava o neto toim, o mais querido que fazia tudo para ela, na budega para comprar uma quarta de bolacha para tomar café, enquanto aguardava sentada na cadeira velha de balanço, embaixo do pé de ciriguela, ao lado do girau de lavar louças. O outro neto Chiquinho era um peste danado e sempre ia nas ponta dos pés com um ramo de arruda e ficava atazanando a vó, colocando o ramo no ouvido ou nos pés da velha. Dona Geraldina só chamava o neto de abestalhado e de leso, por atentá-la demais, e prometia dar uma lapada nos couros dele qualquer dia desses. Ele só mangava sem fazer barulho.
Chiquinho achava graça quando uma vez ou outra caia uma ciriguela bem na testa da avó, só para ver ela gritando de dor. Ria também quando as galinhas ficavam bicando as perebas da perna da velha e ela gritava feito louca.
Quando Toim chegava da budega ia direto preparar o café da avó, e dividir as bolachas com os outros irmãos. Toim ficava velhaco, para que o irmão não escondesse bolachas. Chiquinho como sempre só de migué, para que o irmão desse uma bolacha a mais a ele, como isso não acontecia, começava de muganga e arretado o dia todo.
Geraldina permanecia o dia todo na companhia dos netos, enquanto o pai ia para a roça com a mãe trabalhar na lavoura de feijão e plantio de abóbora. Quando era tempo de colher abóbora, era a pior fase de Chiquinho, que odiava comer abóbora. Uma vez foi reclamar que estava comendo abóbora todos os dias e levou uma surra daquelas. O pai sempre tomava umas canas e quando ficava bêbedo, esquentava os couros dos meninos. Não se podia reclamar de nada e ele sempre dizia que ainda bem que tinham jerimum para comer, pois muitas pessoas nem tinham nada o que comer.
Chiquinho não via a hora de ir ao colégio, pois lá tinha rapadura e leite do padre, que era bem melhor que comer abóbora. Dizia ao irmão que abóbora era comida de porco, por ser tão ruim e que os porcos comiam que se lambuzavam. Já o irmão Toim nem ligava, não dava ouvido ao irmão, gostava quando a mãe tirava leite de cabra para comer com jerimum cozido. Como aos sábados não havia aula, era o pior dia dos meninos, pois teriam que ir à roça com o pai, enquanto a mãe e Marilu ficavam com a avó. Às cinco horas da manhã as enxadas dos meninos estavam bem amoladas. As boias já estavam prontas e a cabaça de água cheia.
Chiquinho era um ano mais velho que o irmão Toim. Por ter doze onze anos se achava no direito de falar tudo o que vinha à cabeça. Apesar de Chiquinho ser o mais velho, quem tinha mais credibilidade era Toim, por ser mais responsável e não reclamava de nada. A irmã Marilu, depois que virou mocinha, ficava só em casa cuidando da casa, fazia comida e varria o terreiro.
Marilu estudava à noite na mesma escola onde estudavam os irmãos, mesmo sem o pai gostar. A mãe sempre dizia que Marilu era acanhada e que não conversava quase com ninguém e que Genuário podia confiar na filha que tinha, pois essa não dava mole para bico doce. Na verdade Marilu tinha um olhar de peixe morto, era reservada e não conversava com qualquer pessoa. Não dava mole até conhecer Zé Preto, um rapaz liso que estudava com Marilu e que, com o passar dos tempos, foi se aproximando da moça e ia chegando aos poucos, quando ela ficava sozinha com a velha sega em casa. Marilu só tinha a cara de santa, mas era bem astuta e sempre colocava a avó embaixo da sombra de uma árvore no quintal e ficava conversando baixinho com o cabra, dentro de casa. Para disfarçar ainda mais, ligava o rádio à pilha, sintonizava na AM e colocava no colo da Geraldina. A velha, mesmo com o rádio ligado, ouvia mais de uma voz e logo perguntava a neta se tinha alguém na casa. Como sempre, a neta negava e dizia que estava conversando sozinha. Vivia com o sorriso nas orelhas.
Com as estripulias que aprontava com Zé Preto, que tinha uma lábia danada, quando menos deu fé Marilu pegou bucho. A moça não sabia o que fazer. Pedia para padim ciço, santo expedito e outros santos. Não sabia por onde começar para contar primeiramente a mãe que sempre ouvia a filha. Nem imaginava se o pai soubesse primeiro que a mãe. Seria capaz de capar o rapaz, dar uma surra ou até mesmo matá-lo.
Genuário achava estranho a filha todas as noites acendendo a vela e rezando com o terço entre os dedos. Quando perguntou para a filha por que estava rezando tanto todas as noites, ela sempre dizia que era para que Deus e os santos abençoassem a família. Genuário nem pensava qual era o milagre que a filha pedia.
Quando Marilu percebeu que estava toda embuchada, logo contou para Zé Preto, que quase borrou as calças. O rapaz não sabia como enfrentar o velho, por onde começar, mas prometeu a moça que ia pensar na melhor forma de enfrentá-lo.
Percebendo que o corpo estava mudando e tentava disfarçar ao máximo, para o pai metido a valentão não descobrir, teve que contar a mãe, já que Zé Preto não tinha coragem de enfrentar a realidade. A mãe fez mil questionamentos a filha e disse que estava decepcionada, mas que naquele momento não sabia o que fazer, por onde iniciar a conversa com o marido. Isaura pediu para que a filha não contasse nada a ninguém e que em uma semana ia falar com Genuário.
Certo dia, na demolida da roça, na hora do almoço, Isaura criou coragem e contou o causo ao marido que não recebeu a notícia nada bem. O coitado estava só o pó. Só faltou enfartar o danado do homem. Ele saiu correndo no meio da lavoura de feijão rumo à casa e Isaura atrás. Ao chegar em casa a vontade que tinha era de esganar a filha, mas o pior já estava feito. De prontidão fez mil questionamentos a filha, que contou como tudo aconteceu. De imediato Genuário subiu no lombo do jegue e foi à procura de Zé Preto, cabra bexiguento. Encontrou o rapaz e esculhambou de cima a baixo. Não quis matá-lo para que a filha não ficasse viúva, mas fez o moço casar a força e levar a filha embora. Não aceitava filha de barriga dentro de casa e muito menos amancebada.
Marilu arrumou a boroca, colocou no caçuá encima do jegue e partiu para morar com o marido nas terras do pai dele, em outro município. Genuário muito abatido nem quis ver a partida da filha, não deu a benção. Coitada de Isaura que teve que ficar escutando o tempo todo o marido dizendo que ela não soube educar a filha e que fez coisas erradas de baixo do nariz deles.
Passou-se cinco anos e Marilu começou visitar os pais. Isaura ficava contente em ver a filha e o neto, só não demonstrava muito para que o marido percebesse que ela foi frágil com a filha. Nem o neto Genuário pegava no colo, também não recebia a benção da filha. Ficava na dele calado, sofrendo por dentro. Assim foi por longos anos.
Chiquinho e Toim ficavam brincando com o sobrinho nos quintais e colocava o guri para a avó segurá-lo. Ela nunca disse nada, mas sempre soube que as vozes que ouviam, enquanto ela ficava com o rádio no colo, era do Zé Preto que vinha fazer traquinagem.
Zé Preto, um belo dia, criou coragem e pediu perdão ao sogro e disse que deveriam viver como família.
Genuário viu que não adiantaria chorar o leite derramado e os perdoou. Assim começaram a conviver em família.
AUTOR: Francisco de Assis Ferreira
Atuação Profissional
2008 – 2013 Professor Universitário no Curso de Letras e Articulador Pedagógico em Educação a Distância (UNIASSELVI)
2007 – 2016 Servidor Público: Professor de Língua inglesa, Língua Portuguesa e na Educação Especial.
SEDUC-AM / SEMED –AM / SED – MS
Formação Acadêmica/Titulação
2003 – 2006 Graduação em Letras Português e Inglês.
2013 – 2017 Graduando em Enfermagem. UNIDERP
2011 – 2012 Especialização em Educação Especial Inclusiva.
2011 – 2012 Especialização em Educação a Distância: Gestão e Tutoria.
2010 – 2012 Especialização em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura
2015 – 2017 Especializando em Antropologia Indígena – UFMS
É autor de Crônicas, Contos e dois Livros (em desenvolvimento).
- Louise (Livro/Romance/Drama/Mistério)
- Sertão Velho (Livro Biográfico)