A HERANÇA
CARA OU COROA
Estava lá todo na beca, Senhor Ferraz, antes fosse uma festa e não um velório. Terno slim, sapatos em couro da cor da noite, gravata xadrez. Sala repleta de gente elegante de tudo quanto é lado. A sala de acolhimento parecia um banquete: chás, bolachas, cafés, bolos, tortas, refrigerantes… havia de tudo com variedades. Coroas de flores enviadas por pessoas importantes da sociedade. Quase não havia espaço para tantas rosas.
Algumas lágrimas rolaram, soluços, inconformismos, mas não tinha jeito, Senhor Ferraz havia descansado as pupilas, foi de encontro ao senhor, descansou para a eternidade.
O velório não demorou muito, não foi igual velório de pobre, aquela choradeira que parece gritos. Todos estavam comportados de óculos escuros e enxugando as lágrimas com lenço. Quando se dirigiram ao cemitério só se via carros novos, importados, nem pareceu com o velório do Maneco. Maneco havia batido as botas, partiu dessa para melhor (só para os outros que essa frase vale, não é mesmo?), fechou o paletó, entregou a alma a Deus, foi para o beleléu, foi para a cidade dos pés juntos, esticou as canelas, fechou os olhos, empacotou, deu o último suspiro, botou o pé na cova…descansou!
Maneco era um conhecido de minha rua que, quando morreu, teve que ir encima de uma carroça sendo puxada por um jumento, que foi o velho companheiro dele. Pobre sofre até depois de morto. Sem contar que não tinha nem dinheiro para os parentes comprarem o caixão… teve que pedir aqueles da prefeitura, feio que dói, mas para quem tá morto, qualquer caixote serve. Nem preciso dizer como era o caixão do Senhor Ferraz, não é mesmo?
Senhor Ferraz deixou uma fazenda de milhões de metros quadrados, dez mil cabeças de gado, oito imóveis nos melhores bairros da cidade, vários terrenos e vinte milhões que ficara para a viúva, Dona Carlota Joaquina. Os filhos do casal já eram bem sucedidos e agora com a herança ficaram mais ricos. Jhon trabalhava na Receita Federal; Janny no Tribunal de Contas do Estado; Simon Desembargador. Todos cursaram nas melhores universidades federais do país. É aquele ditado: o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre. Como diz o ditado da dona Marilene, uma velha conhecida, o pobre é igual cachimbo: só leva fumo!
Coitados dos familiares de Maneco que não tiveram a mesma sorte, ou melhor, restaram algumas dívidas que o finado havia feito de financiamentos para plantar banana e café, e agora a viúva, Maria Sebastiana da Silva Trindade, terá que pagar. Ficaram também dívidas das mercadorias compradas com os “prestonistas”, que foram parceladas em sessenta vezes. Só desse jeito para pagar que, aliás, pagam o triplo do valor, mas se não for dessa forma, não compram nada.
O filho mais velho, Zé da Silva Trindade cursou só o fundamental. Ele fez um curso pelos correios de concerto de bomba de água. Rezava para que alguém queimasse uma bomba para ele faturar o dinheiro do sal. Como na cidade havia muita queda de energia, ele se valia desse azar da população e logo tinha trabalho.
Maria Nazaré, a filha mais nova, quase terminou o curso de Pedagogia. Desistiu, ou melhor, foi forçada a parar o curso por não haver condições financeiras para pagar o que devia. Além de parar com os sonhos, ficou com o nome sujo.
Francisco, conhecido como Chico das mulas era coveiro no cemitério. Conseguiu o emprego por ser o único na cidade que encarou a demolida. A tarefa mais dura foi cavar a cova para o próprio pai. Cada pazada que dava para cavar, as lágrimas rolavam.
Os outros filhos trabalhavam nas lavouras de café, feijão, milho e no pastoril para os grandes fazendeiros.
O velório foi demorado, teria que esperar os parentes da cidade vizinha. Na sala da casa uma mesa com uma vasilha cheia de bolachas e bastante chá de capim santo e café. Só isso que havia. Debaixo do caixão uma bacia com água e duas velas acesas. Era tanta gente “chogritando”, que não escutava ninguém conversando. O caixão estava repleto de flores que a esposa colheu no quintal para enfeitar o Maneco, não tinha dinheiro para comprar uma coroa e enfeitar o senário. Nos pés de Maneco uma botina que ele tanto usava, camisa de mangas curtas e a velha calça social.
Você deve estar se perguntando, caro leitor, o que resultou as bananas e os cafezais, não? Quando chegou a safra das bananas, nem macacos queriam comer, ou melhor, foram tantas bananas que se estragaram, perderam-se quase tudo. Com os preços baixos venderam banana a um real o cacho. Carregaram em cima do jegue, de alcunha zelão – pois pobre coloca nome em tudo quanto é bicho. Se fossem pagar frete em carro, não daria. Para não ficar totalmente no prejuízo, Sebastiana não pensou duas vezes: fez doce para vender na feira. Não lucrara muito, mas deu para tirar o dinheiro do açúcar e se lambuzarem com o monte de netos. Em relação ao café, esse só deu foi trabalho para Maneco, pois sem dinheiro para comprar veneno para combater a praga, por ser muito caro, nem flor deu.
Voltando à herança do Senhor Ferraz, que, aliás, ricos são chamados de senhor e pobres de seu, ou seja: Senhor Juarez, Senhor Petrônio; seu Maneco, seu Lunga, seu Zé. Os filhos não brigaram tanto, sendo que a viúva Carlota ainda detinha cinquenta por cento do capital e o restante fora dividido.
Quando Maneco recebeu a primei terra na cara – que não foi dada pelo filho coveiro – os dez filhos, no cemitério, já começaram a articular para vender as poucas braças de terra do velho sítio que Maneco ganhou do no assentamento. Não deu um mês e consumaram o fato. Só deu para um comprar uma geladeira, outro um televisor, outro uma moto velha e assim gastaram tudo. Sebastiana observou tudo calada, pois se reclamasse, poderia até perder o barraco para os filhos também consumarem.
Senhor Petrônio Goular Ferraz, o Senhor Ferraz, morreu de velhice com noventa e oito anos de idade, no quarto da luxuosa clínica Lé Vité, uma das clínicas mais caras do Brasil. Morreu, ou melhor, faleceu, pois quem morre é pobre, como um pássaro.
Seu Manoel Juventino dos Santos Pereira da Silva Trindade – nome mais comprido que esperança de pobre – seu Maneco, que poderia ser chamado também de Mané ou Neco, morreu de insuficiência respiratória, cardíaca, renal, depois de ter ficado horas na maca nos corredores do hospital regional do bairro Zé Pereira. Ficou mais de um mês internado lutando com a morte, mas não venceu e se deu por vencido. Findou os 71 anos de tanto sofrimento.
Doutor Ferraz tinha o nome na parede da maior universidade do Brasil, por sua contribuição na medicina, desenvolvendo um sistema de manipulação da célula do câncer.
Seu Mané não assinava nem o nome, tinha o nome fixado, não em uma universidade, mas no SPC e SERASA, por ter feito empréstimo para os filhos. No final de cada mês só dava para comprar o mantimento para duas semanas. Vivia com o dedo melado de tinta quando testemunhava algo e, muitas vezes, nem sabia o que estava assinando.
No parque imperial lote oitenta havia uma gaveta da família Ferraz com uma estrutura que mais parecia uma casa, com portas de vidro temperado, telha romana e uma estátua de um anjo. O cemitério parecia um campo de golfe, dava para deitar na grama rasteira sem que sujasse a roupa.
No cemitério municipal cheio de mato, uma capoeira só. Bem nos fundos, pois já estava repleto de sepultura, apenas uma cruz de madeira fincada em cima da cova do Maneco, nem escrita tinha, por não ter tinta para pintar. Apenas um rosário, um terço.
Uma coisa é certa: dois corpos, duas histórias e só um destino, esse que todos irão um dia. Não importa se é empregado ou patrão, doutor ou analfabeto, rico ou pobre, bonito ou feio… ao pó voltarás! E mesmo sabendo disso, muitos vivem só para si, como se fossem imortais.
AUTOR: Professor Francisco de Assis Ferreira